Especialistas alertam para a necessidade de um pacto robusto, com mecanismos de controle eficazes para combater as causas do problema e não apenas os sintomas

A poluição plástica é um dos maiores desafios ambientais da atualidade e, embora a gestão de resíduos seja colocada no centro das soluções, especialistas alertam que essa abordagem tem se mostrado insuficiente diante da complexidade do problema. Às vésperas da última rodada de negociações para o Tratado Global da Poluição Plástica, marcada para agosto pela Organização das Nações Unidas (ONU), entidades brasileiras defendem a necessidade de um pacto mais robusto e estruturado em mecanismos eficazes de controle.
O posicionamento foi apresentado durante o webinário “O que você precisa saber sobre o tratado global da poluição plástica”, promovido na terça-feira (27) pela Coalizão Vida Sem Plástico, que reuniu representantes da sociedade civil para discutir os rumos do acordo internacional e reforçar a urgência de um tratado robusto que combata a crise ambiental provocada pelo plástico.
Desde que o processo de elaboração do tratado foi iniciado, em 2022, na 5ª Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente, a proposta tem buscado abranger toda a cadeia do plástico — da extração ao descarte. Entretanto, a pressão de setores industriais, sobretudo do lobby petroquímico, ameaça restringir o escopo da negociação à gestão de resíduos, desconsiderando os impactos da produção em massa e do consumo desenfreado.
A engenheira de produto e conselheira do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e do Comissão Nacional de Substâncias Químicas (CONASQ) Zuleica Nycz classificou como ilusória a ideia de que a reciclagem possa resolver o problema da poluição plástica. Representante da organização Toxisphera, ela defendeu a criação de um sistema internacional de rastreabilidade das substâncias químicas presentes em plásticos, capaz de garantir transparência e segurança ao longo de todo o ciclo de vida dos produtos. “Não é mais possível a gente continuar consumindo artigos de plástico sem saber o que eles contêm”, afirmou.
Neste sentido, a bióloga e doutoranda em ciência política, Natália Grilli, ressaltou que é preciso mudar a lógica do enfrentamento à poluição plástica. Para ela, não basta cuidar dos resíduos, é preciso “fechar a torneira”. Integrante da Liga das Mulheres pelo Oceano e da Coalizão de Cientistas por um Tratado Eficiente, a especialista defendeu que o texto final do pacto global traga metas concretas de redução na produção de plásticos e eliminação de substâncias tóxicas, além de garantir justiça ambiental. “A crise do plástico está conectada às mudanças climáticas, à perda de biodiversidade e à poluição. É um problema estrutural, não técnico”, disse.
“Quando falamos no tratado, pensamos em soluções sistêmicas que vão abordar todo o ciclo de vida do plástico, como [es]tá na resolução da ONU que criou o tratado. A gente tem que pensar na produção, porque às vezes falamos de poluição pelo plástico e pensamos só na parte de resíduo pós-consumo, mas existe poluição também na fase de extração da matéria-prima, de manufatura de plásticos e também no uso”, ressaltou.
O engenheiro químico, membro da Coalizão Vida Sem Plástico e do Comitê Gestor da Aliança Resíduo Zero Brasil, Rafael Eudes compartilhou visão similar. Para o especialista, a crise do plástico é sistêmica e necessita de soluções estruturais. “A poluição plástica não é só um problema de resíduos. Ela está conectada à extração de combustíveis fósseis, à contaminação ambiental e à violação de direitos humanos. O tratado precisa atacar as causas do problema, e não apenas os sintomas”, destacou.
Por isso, a proposta dos especialistas é que o tratado vá além da reciclagem e estabeleça metas claras de redução na produção de plásticos primários, especialmente os de uso único e os não essenciais. Isso inclui incentivar o desenvolvimento de produtos mais duráveis e recicláveis, com menor pegada de carbono; substituir materiais plásticos por alternativas ambiental e socialmente mais seguras; e integrar as metas do tratado com compromissos de outros acordos internacionais, como o Acordo de Paris e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Impacto ambiental e na saúde humana
Os impactos ambientais e sociais da cadeia do plástico começam muito antes do descarte. São comunidades frequentemente vulneráveis que arcam com os custos da extração de matéria-prima e da manufatura, etapas iniciais do ciclo do plástico que, segundo Grilli, concentram mais de 90% das emissões de gases de efeito estufa relacionadas ao setor.
A indústria do plástico, altamente dependente de combustíveis fósseis, é responsável por até 4,5% das emissões globais de carbono. E esse número tende a crescer. Estimativas indicam que, até 2040, o setor pode responder por 15% do total de emissões anuais e consumir até 20% da produção global de petróleo. “É uma indústria intensiva, ligada diretamente à indústria do petróleo. E, com a transição energética, a produção de plástico tem se tornado uma alternativa estratégica para o setor petroquímico”, alertou.
Essa produção intensa afeta diretamente a saúde humana. Segundo Zuleika, estudos apontam a existência de mais de 16 mil substâncias químicas utilizadas na fabricação do plástico. Dessas, 4.200 são consideradas perigosas e cerca de 10 mil sequer passaram por qualquer avaliação toxicológica.
“Essas substâncias permanecem nos materiais mesmo após o descarte ou reciclagem, migrando para o meio ambiente e o corpo humano”, explicou. “Então, todos aqueles que estão expostos de alguma maneira a essas substâncias estão correndo um risco de contaminação”, completou.
Essas substâncias tóxicas e os resíduos chamados de microplásticos são um problema invisível a olho nu, pois se espalham em partículas microscópicas no ar, na água e nos alimentos. Já foram identificados micro e nanoplásticos em tecidos humanos como o cérebro, o coração, os ovários e a placenta.
Os estudos sobre os impactos ainda estão em desenvolvimento, mas há indícios de que essas partículas estejam ligadas a distúrbios hormonais, doenças cardiovasculares, infertilidade e até câncer. “Embora a gente ainda não saiba muito sobre os riscos, já temos impactos conhecidos e algumas doenças prováveis por conta dessa produção plástica”, pontuou a economista Alessandra Cristina Azevedo, especialista em sustentabilidade e responsável por projetos na área de compras sustentáveis e plásticos no setor hospitalar.
Diante disso, Zuleika defendeu a criação de um mecanismo internacional de transparência e rastreabilidade das substâncias químicas utilizadas em plásticos, que esteja previsto no texto do tratado global em negociação. Segundo ela, esse sistema deve padronizar informações para todos os países, beneficiar governos, trabalhadores da cadeia do plástico e consumidores, além de permitir a tomada de decisões baseadas em evidências. “Os governos podem criar bancos de dados próprios e os consumidores passam a ter mais conhecimento sobre o que estão consumindo, podendo fazer escolhas informadas”, pontuou.
Zuleika também criticou as chamadas tecnologias de destruição térmica, como a incineração e a pirólise, frequentemente rotuladas pela indústria como formas de reciclagem. Ela alertou que esses processos emitem substâncias tóxicas e colocam trabalhadores e populações em risco, especialmente em países com baixa capacidade de regulação ambiental. Para ela, o tratado deve eliminar do texto termos como “recuperação energética”, considerados eufemismos para práticas poluentes.
Plásticos descartáveis
O plástico de uso único, utilizado em embalagens, roupas, utensílios e produtos hospitalares, é uma das principais fontes de resíduos sólidos no planeta. No Brasil, menos de 4% do resíduo plástico gerado é reciclado.
“Os plásticos levam centenas de anos para se decompor e, ainda assim, podem se transformar em compostos químicos, tóxicos, e liberar os nano e micro plásticos que acabam contaminando o solo, a água, e isso impacta a nossa saúde. Diante disso, existe o desafio do pós-consumo, a questão de produtos e embalagens, especialmente os produtos de uso único, que são cada vez mais descartados e geram grandes quantidades de resíduos sólidos perigosos”, ressaltou Azevedo.
Os danos causados pelo plástico não se limitam ao pós-consumo, eles atravessam toda sua cadeia de produção. A extração de combustíveis fósseis para fabricar o material emite grandes quantidades de gases de efeito estufa e afeta diretamente comunidades próximas aos pontos de exploração. Já na fase de descarte, métodos como a incineração geram dioxinas, furanos e outras substâncias tóxicas que contaminam o ar, o solo e a saúde humana.
Muitas comunidades em situação de vulnerabilidade vivem próximas a esses locais e sofrem os efeitos diretos da poluição. Por esses motivos, a crise do plástico está intimamente conectada com os grandes desafios ambientais globais. A expectativa é que, até 2050, a produção de plástico triplique e que, nesse mesmo período, haja mais plástico do que peixes nos oceanos.
Nesse cenário, o Brasil, país com ampla biodiversidade e histórico de mobilização ambiental, tem papel estratégico nas negociações do Tratado Global. A próxima etapa, marcada para acontecer entre 5 e 14 de agosto em Genebra, pode ser a última chance de garantir um tratado forte e juridicamente vinculante. “Sem um tratado forte e justo, o plástico continuará a sufocar ecossistemas, ameaçar vidas e perpetuar desigualdades”, alertou Rafael Eudes.
Com mais de 220 representantes da indústria petroquímica participando da última rodada de negociações — o maior número entre todos os grupos —, a pressão contrária a um tratado robusto é real. Além disso, países com forte lobby de petroleiras tentam esvaziar o pacto global, reduzindo-o a uma abordagem centrada na gestão de resíduos, sem considerar os impactos da produção e do consumo excessivo de plásticos.
Por isso, segundo o engenheiro químico, o atual estágio das negociações é decisivo para definir os rumos do acordo e que a pressão da sociedade civil é fundamental para garantir que o texto final seja ambicioso, com metas claras e mecanismos eficazes de monitoramento e responsabilização.
A bióloga Natália Grilli também reforçou a importância da ciência e da sociedade civil estarem presentes nas negociações “para garantir que as decisões se baseiam em evidências e não apenas em interesses econômicos”.
O que é o tratado global contra a poluição plástica?
O Tratado Global contra a Poluição Plástica é um acordo internacional que está sendo negociado no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) com o objetivo de combater de forma ampla e integrada a crise ambiental provocada pelo plástico. Ele busca estabelecer normas juridicamente vinculantes para todos os países, abrangendo toda a cadeia de produção do plástico.
O objetivo do tratado é ir além da simples gestão de resíduos, abordando questões estruturais como a redução da produção de plásticos, a eliminação de substâncias tóxicas, a transparência sobre os componentes químicos usados nos produtos e o incentivo a modelos econômicos circulares, baseados na reutilização e responsabilidade compartilhada. A expectativa é que o pacto se torne um marco global na luta contra uma das maiores ameaças ambientais da atualidade.
A proposta surgiu em 2022, durante a 5ª Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente, quando foi aprovada, por consenso entre os países-membros, uma resolução histórica que estabeleceu o mandato para desenvolver um instrumento legalmente vinculante até o final de 2024.
Desde então, as negociações têm ocorrido por meio do Comitê Intergovernamental de Negociação (INC), que já realizou cinco sessões, sendo a próxima (INC-5.2), marcada para agosto de 2025, em Genebra.
Apesar da expectativa inicial de concluir o tratado até novembro de 2023, as negociações foram travadas por divergências entre os países, especialmente em relação à ambição do texto e aos interesses de setores econômicos como o petroquímico. Com isso, o cronograma atrasou e a conclusão das tratativas dependerá do avanço nos debates técnicos e políticos nos próximos meses.



